Meia dúzia

Descobri que na Alemanha também se vendem ovos em caixinha. Então, resolvi encher seis buraquinhos da geladeira de uma só vez. Hora do omelete.

“Segurando o vestido azul com a ponta dos dedos, a violonista se dirigiu à porta, deixando os aplausos – sempre efusivos – para trás. Mas, como prevê o protocolo, ela se escondeu atrás do porta, antes do adeus final, enquanto as mãos do público ainda se debatiam no ar. Só depois de alguns segundos, voltou. Primeiro, fez a reverência. Pausa. Um sorriso fugitivo escapou. Pausa. Meia-volta demorada. Pausa. E enfim, ela se foi. A porta se fechou nas suas costas, encerrando a sessão dos claps. Foi quando uma senhora atrás de mim comentou que chegara a hora do Paganini. Paganini?, questionei-me.  Tentei pescar o que estava escrito no folheto da programação, mas a moça que o lia logo ao lado foi impulsionada a fechá-lo.

Time to clap.

Novamente, a ladainha dos aplausos que conduzem a violinista à parte central do salão (já não tenho mais criatividade para deixar a descrição menos enfadonha). Mas, antes da história, já adianto a moral: eu nunca havia escutado Paganini. Não teria como esquecer um italiano desses.

Não sei por quanto tempo aquela moça de vestido, cabelos e olhos negros ficou revivendo aquela composição do italiano. Perdi a noção. Não consegui nem me distrair com minhas próprias divagações.  E agora, parece difícil descrever algo que surpreendeu não só aos olhos, mas também aos ouvidos e à qualquer lógica interna de musicalidade. A violinista parecia fazer com que as notas pulassem no violino. Ou pulassem do violino, escapando por entre as cordas, enganando nossos ouvidos. Irritavam, até, porque era impossível acompanhá-las. O mais surpreendente era que elas saíam dos dedos. Os dedos da moça. Obviedades sinistras! Os dedos, pensei, que pareciam máquinas. Mas pensei de novo. Se as máquinas vieram depois dos homens, não sendo mais do que, deles, apenas imitações inferiores,  não deve haver máquina no mundo capaz de transmitir o que aqueles dedos, daquela moça, naquele salão, transmitiam. E agora, me sentindo como uma máquina frustrada, fico só na tentativa de descrever o que ouvi, vi e senti. E, obviamente, aplaudi.”

Deu de ovos, né? Vamos ver o que eu acho amanhã para a minha geladeira.

* E, para os curiosos, as descrições ovais correspondem a duas horas de um pequeno concerto que assistimos na segunda-feira. Os músicos são, na realidade, alunos do curso de Música da Universidade de Mannheim. Se agora, com 20 e poucos, tocam assim, o que tocarão daqui a 20 e poucos?

* E para a Ela, que perguntou dos pianistas, digo só que eles eram geniais! Mas não consegui observar nem absorver tudo! De qualquer jeito, fiz questão de mencioná-los também. Afinal, o todo só era belo porque era, justamente, um todo – e não apenas partes isoladas.

* E obrigada pelos comentários! E sim, Lau, prometo compartilhar as minhas guloseimas geladas com todos. O fim do pão-de-queijo vai ter que continuar sendo meu, porque esse vai pro forno, e aí é outro papo! haha!

ovo novo

Mais um ovo sentando no seu lugar previamente reservado pelos fabricantes de geladeira.

“Os aplausos, embora um pouco desnorteados, acompanharam o garotão e seu instrumento até a porta, acompanharam o garotão largando seu instrumento e voltando novamente à frente do piano, acompanharam-no enquanto ele baixava a cabeça em agradecimento à plateia pequena, mas eufórica, que continuava a aplaudir. Palmas exaustivas. Descansei minhas mãos sobre as pernas no tempo de um suspiro, e logo adentrou uma moça. Vestido azul longo, cabelos pretos curtos e mãos delicadas. Mas fortes. Ajeitou o queixo sobre o violino, o violino sobre o ombro esquerdo, e avançou nas notas. A melodia era suave e intensa ao mesmo tempo. Era inquietante mas aquietava. Paradoxal. Mas a força da música que saía do violino, combinada com a que saía do piano logo atrás, pareciam se encaixar perfeitamente naquele ambiente de lustres e chão lustrado. As paredes subiam longe, decoradas com quadros grandiosos. Do topo ao chão, observavam-nos os representantes da ilustre família real de séculos já bem passados, eternizados em tintas coloridas e moldura dourada. Soa estranho?  Talvez. Mas naquele contexto, fazia sentido: estávamos no castelo de Mannheim, construído em 1720 por ordem de Karl Theodor, o príncipe regente. Eu já ouvira que em algum dos 400 quartos do castelo, Mozart havia tocado enquanto criança. Teria sido ali? Acordei de minha divagação com os aplausos, novamente desafinados.”

O primeiro ovo

Continuando com a metáfora do Kühlscrank (explicada no About, logo à direita), posto meu primeiro texto aqui como se este fosse o primeiro item da minha geladeira que, por enquanto, só está cheia de ar resfriado. E como – já sinto pelos meus olhos que se fecham – será um texto pequeno, batizo-o de ovo.

” O salão era de baile, mas de bailes refinados. Quem dizia isso eram os lustres, que, se contei certo, eram seis. Lustres avantajados, impondo o respeito da sua luz a anos-luz (tá, nem tanto) das nossas cabeças. Iluminavam a madeira lustrada do salão de baile refinado. Estavam todos entre si afinados: o salão, o lustre, a madeira. Estava afinado o silêncio da plateia, estavam afinados os aplausos quando um certo garotão, ele tinha carinha de 20, adentrou o salão. Afinado?, testou ele. Afinado. Sentou-se, apoiou-se, ergueu o braço direito e, num susto, mergulhou-o nas cordas do seu violoncelo. Tocou tudo – as cordas, o silêncio, a mim. Quem interrompeu-o foi a última nota do piano que o acompanhava, ao fundo. Tentamos afinar os aplausos, mas eles escaparam desorientados pelo grande salão. Macht nichts.”

Mais omelete amanhã.